O fenômeno traz riscos aos pacientes, como a exposição frequente a radiações comuns em exames de imagem
Os médicos de planos de saúde brasileiros já pedem mais exames de tomografia e ressonância do que profissionais de países desenvolvidos, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão responsável pela regulação e controle dos planos de saúde.
O número desses procedimentos por pacientes de convênios médicos no Brasil cresceu 22% em apenas dois anos, o que, segundo a ANS e especialistas, indica que muitas solicitações podem estar sendo feitas indevidamente.
Entre as principais razões para a realização excessiva dos procedimentos estão falhas na formação médica, interesses financeiros de hospitais e laboratórios e má remuneração por parte das operadoras aos prestadores de serviço.
O fenômeno, além de aumentar o desperdício de recursos no sistema privado, ainda traz riscos aos pacientes, como a exposição frequente a radiações comuns em exames de imagem.
A tomografia computadorizada e a ressonância magnética são usadas como referência pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para avaliar o acesso aos recursos de saúde na área de tecnologia médica.
Elevado
Enquanto nessas 35 nações – incluindo algumas das mais desenvolvidas do mundo, como Alemanha, França e Estados Unidos –, a média anual de ressonâncias é de 52 por 1 mil habitantes, no sistema suplementar brasileiro o índice foi de 149 por 1 mil beneficiários em 2016.
Segundo o estudo da ANS, a média de tomografias realizadas também é superior nos planos de saúde do Brasil em 2016 em comparação com países ricos: 120 exames por 1 mil habitantes nas nações da OCDE ante 149 por 1 mil beneficiários dos convênios médicos brasileiros.
Considerando os números absolutos, o número de ressonâncias feitas por pacientes de convênios passou de 5,7 milhões em 2014 para 7 milhões em 2016, alta de 22%. Já o de tomografias passou de 5,9 milhões para 7 milhões no mesmo período, crescimento de 18%.
Ao todo foram realizados no ano passado 796,7 milhões de exames complementares por beneficiários de planos de saúde no Brasil. Entre 2014 e 2016, verificou-se um aumento de 12% no número de exames, segundo o Mapa Assistencial da Saúde Suplementar da ANS.
Médicos do Brasil são os que mais pedem exame
O excesso de procedimentos e exames, sem diretrizes clínicas que discutam a sua eficácia, não se traduz em resultado de saúde, pondera Karla Santa Cruz Coelho, diretora de Normas e Habilitação dos Produtos da ANS.
Ela acrescenta que é preciso ter evidência clínica para se pedir tantos exames. Se o paciente, por exemplo, tem a necessidade de emagrecer, é preciso checar se há doenças que causem o sobrepeso ou se há outras formas de emagrecer. “São necessárias outras avaliações, pois só o exame não resolve”, diz.
Este excesso de exames, segundo a diretora, representa um desperdício que põe em risco a sustentabilidade das operadoras. Em função disso, grupos de estudos já foram criados para identificar novos modelos de remuneração dos profissionais. “Enquanto os prestadores de serviço, como hospitais e laboratórios, forem pagos por procedimento e não por qualidade, o número de exames será infinito”, diz ela.
Uma das propostas é que os pagamentos fossem feitos com foco nos resultados em saúde e na prevenção de doenças. Atualmente a remuneração dos prestadores é feita por procedimentos realizados e por internações.
Mais de 40 exames antes de consulta
Para agendar a primeira consulta, ele foi informado que antes precisaria fazer alguns exames. E para surpresa dele, a lista era longa: 42 tipos de exames. “No laboratório foi necessário retirar 11 tubos de sangue”, conta o paciente, de 20 anos, a quem foi dada a explicação de que a antecipação dos procedimentos era para agilizar o tratamento.
Só após ter os resultados em mãos ele teve acesso à primeira consulta, para que o profissional médico pudesse avaliar o seu caso: o paciente, cujo nome, assim como os demais, está sendo preservado a pedido, queria emagrecer. “O médico explicou e que era importante ver todas as taxas juntas, já que isoladas elas poderiam apresentar um outro cenário”.
Durante o tratamento, este paciente teve que repetir os mesmos exames. “Para acompanhamento”, relata. Já está na terceira coleta, feita a cada três meses. Desde janeiro, realizou 126 exames.
E este não foi o único caso. A uma outra paciente, que também pretende emagrecer, foram solicitados cerca de 25 exames: “Cheguei na consulta e a médica informou que só poderia me prescrever uma dieta após os exames”.
A um terceiro, foi pedido mais de 30. “Fiquei surpreso. Isto nunca tinha me acontecido”, relatou o jovem. No caso dele, a operadora do plano de saúde recusou pelo menos 30% dos pedidos. “Acabei desistindo e procurando outros profissionais”, contou.
Sem motivo
Para o presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM), Carlos Magno Pretti Dalapícola, não há justificativa clínica para a realização de tantos exames, muitos menos com uma frequência tão curta. “Não é necessário. É uma expoliação do sangue do paciente. Isto só é feito quando há alguma doença que precise de acompanhamento, mas com um intervalo maior”, pondera.
O endocrinologista Albermar Harrigan avalia que o que ocorre é um “modismo”, com vários profissionais criando situações e supervalorizando exames em detrimento de uma avaliação clínica. “E o que é pior, em muitos casos os exames são pedidos sem que o médico nem mesmo veja, avalie, converse com o paciente. Exame é um detalhe a mais, não o diagnóstico, que é fechado com história clínica e o exame físico”, assinala.
Harrigan lembra de um paciente que o procurou com uma lista de 61 exames pedidos por um outro profissional e que foram recusados pela operadora de plano de saúde. “Queria que eu fizesse a justificação para que eles fossem autorizados, não aceitei”, relata.
Com 50 anos de profissão, o nefrologista Michel Silvestre Zouain Assbu garante que nada supera a conversa e a avaliação clínica do paciente. “Nada substitui a relação entre o médico e o paciente, o exame físico, a avaliação. Muitos resultados de exames laboratoriais podem até atrapalhar”, pondera.
Ele relata que há profissionais que pedem muitos exames e não sabem nem interpretar os resultados. “Acabam encaminhando o paciente para outros profissionais. E preciso ter cuidado. Sem contar os gastos desnecessários”, observa.
Conselho Regional de Medicina critica exagero
Insegurança, judicialização da medicina – com vários médicos sendo acusados na Justiça – e até para auferir ganhos com exames auto gerados estão entre os motivos que levam os profissionais médicos a pedirem exames em excesso, relata o presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM), Carlos Magno Pretti Dalapícola.
Mas apesar da constatação até pelos dados da Associação Nacional de Saúde suplementar (ANS), não há nenhuma reclamação registrada no Conselho sobre o assunto. “Se recebermos ela será investigada, com certeza”, diz Carlos Magno.
O excesso de exames, pondera ele, pode trazer riscos para os paciente, como uma perfuração da veia, uma trombose. “Uma complicação desnecessária”, pontua.
Ele reforça que, assim como os exames laboratoriais, não há motivos clínicos justificáveis para se pedir tomografias e ressonâncias em espaços tão curtos, entre três a quatro meses. “Há patologias e queixas que precisam de uma investigação, pedem uma avaliação mais ampla. Mas não são todos os casos e nem no volume que temos visto”, assinala, acrescentando: “Muitos querem emagrecer por exame, mas isto não é indicado. E está virando um modismo”.
Outro ponto importante nesta discussão, destaca Carlos Magno, é que 30% dos exames realizados no Brasil ficam esquecidos. “Muitos tem o gasto, pagam e não voltam para buscar o resultado do exame”, relata.
Fonte: www.gazetaonline.com.br